O cangaceiro de chelm
Embora pareça incrível, há descendentes da famosa cidade de Chelm em pleno sertão nordestino. Chelm, situada no leste da Polônia, tornou-se famosa no folclore judaico por ser ridicularizada como terra de bobos. Quando um judeu qualquer falava uma bobagem ou algo que não tivesse nexo, levava logo a pecha de ser de Chelm. Os judeus que lá viviam foram quase todos deportados pelos Nazistas para o campo de concentração de Sobibor.Há cerca de uns cento e cinquenta anos, vinte famílias da cidade de Chelm decidiram sair da Polônia para fugir aos constantes pogroms. E embarcaram num navio cargueiro no porto de Gdansk, no Mar Báltico.
Depois de passar por vários portos da Europa, o navio seguiu rumo ao Atlântico Sul. Na altura do Recife, o cargueiro encalhou e todos os passageiros e tripulantes tiveram que ser transportados para terra firme.
Os Teitelbaums, Fichmans, Godlbergs e demais famílias, esgotadas depois da longa viagem, cheias de tralhas, desembarcaram no Recife. Muito antes haviam chegado os Pereira, Cardoso, Pires, Pinheiro, nomes dos cristãos novos sefaraditas vindos de Portugal.
Olharam em volta, viram que não havia somente brancos iguais a eles e ouviram uma língua completamente estranha. Estavam totalmente perdidos naquela terra estranha. Mas nada mais os amedrontava, após as repetidas perseguições na Polônia.
À primeira pessoa que passou perguntaram: “Sinagog?”. Nada. Mais uma e nada. Finalmente abordaram um casal bem vestido que resolveu levá-los até a sinagoga. Ficava num casarão da Rua do Bom Jesus (que coincidência) nr. 197. O nome que leram foi “Kachal Zur Israel” (Congregação Rochedo de Israel).
Logo se deram conta que era totalmente diferente da sinagoga que frequentavam em Chelm.
Foram falar com o “Shames” (bedel) em yidish, que nada entendeu. Ele, por sua vez, começou a falar em ladino. Nada. O rabino foi chamado e passou a falar em hebraico. Felizmente um deles entendia hebraico. Perguntaram aonde poderiam se estabelecer e o rabino falou que o ideal seria eles irem para o sertão pernambucano e lá estabelecerem uma colônia.
Pôs-lhes à disposição algumas carroças puxadas à jegue e um guia que os levou até perto de Caruarú.
Já era quase noite e estavam tão cansados que mal tiveram tempo de examinar o local. Fazia muito calor e puseram-se todos a dormir ao relento mesmo. No dia seguinte, viram que se tratava de uma região bastante inóspita. Vegetação rasteira, terreno semi-árido, alguns arbustos e árvores com espinhos.
Remexeram a terra para ver se dava para plantar algo e encontraram uns objetos que lembravam panelas de cozinhar. Dirigiram-se a uma palhoça a poucos metros dali. Havia um casal com um montão de filhos seminus que começaram a rir quando viram o grupo de judeus de Chelm, vestidos à moda do “shtetel”. Começaram a falar com eles, mas eles só conseguiram se entender por gestos.
O homem, acompanhado do filho mais velho levou o grupo para a paróquia. O padre os recebeu com muito afeto, serviu uns bolinhos de mandioca e água. Logo viu que se tratava de judeus, e ficou muito espantado como é que eles haviam chegado até ali. Bem ali, no sertão pernambucano. Disse que o lugar se chamava Panelas.
De Chelm para Panelas, vejam só. Só eles mesmo. Afinal nada estranho, em se tratando dos “luminosos” de Chelm.
Não se sabe ao certo, mas o fato é que eles resolveram montar um acampamento ali mesmo e, como muitos deles sabiam lavrar a terra, estabeleceram-se em Panelas.
Construíram várias choupanas, com a experiência que tinham da montagem de “Sucot” e uma construção maior que servia de lugar de congregação e de oração. Não trouxeram muita coisa da Europa, a não ser livros de oração e o Pentateuco. Algumas pratarias que serviam para “Havdalá” e castiçais de “Shabat” além de “Chanukiot”.
Rapidamente os mais jovens aprenderam a falar português com sotaque nordestino e passaram a frequentar a escola ligada a paróquia. O catecismo era obrigatório, mas nem por isso se assimilaram.
Mas vamos falar agora do “cangaceiro” de Chelm-Panelas. Esse rapaz, descendente dos Goldmans (abrasileirado para Goldi), de nome José, tinha uma fixação em Lampião, o rei do cangaço. E ele tinha uma “fantasia” completa desse seu super-herói. Cavalgava o seu pangaré com toda a indumentária de um autêntico cangaceiro, do chapéu às botas. O chapéu por sinal tinha gravado na frente um enorme “Maguen David” (Estrela de David).
Um dia José, todo paramentado na sua cavalgadura, dirigiu-se à cidade vizinha de Caruarú. Mas parou no meio do caminho numa pousada porque queria tomar um trago e fazer xixi ou vice-versa. Desceu do cavalo, igual a um caubói, e amarrou o seu cavalo num poste, na entrada da venda. Fez o que tinha que fazer, antes de continuar viagem.
Um gaiato que estava do lado de fora ciente da não muio elogiosa reputação daqueles judeus de Panelas precisando de uns cobres, levou o cavalo do Goldi para perto dali, onde havia um criador de cavalos e vendeu o pangaré por um punhado de réis.
Ao sair da pousada, José viu que o cavalo não estava mais onde o amarrara, mas em seu lugar estava o tal do gaiato, que também era judeu, de nome Mendel. Ele então perguntou ao gaiato se ele não havia visto um cavalo, que ele descreveu em detalhes.
“Eu sou seu cavalo”, respondeu Mendel. “Deus me reincarnou como cavalo pelos pecados que cometi, mas como fiz “Teshuvá” (arrependimento), voltei à minha forma de homem. Meu nome é Mendel.”
“Puxa, que bom Mendel, que você agora se tornou uma pessoa honrada e respeitadora e deixou de ser o meu cavalo”, disse Goldi e perguntou onde podia comprar outro cavalo para prosseguir sua viagem até Caruarú. Mendel lhe falou do criador de cavalos que ficava logo ali adiante.
Qual não foi a sua surpresa quando José lá chegou e deu de cara com seu cavalo. Acariciando o cavalo disse “Puxa Mendel, nem se passaram dez minutos e você já pecou novamente!”